HOMENAGEM À MANGUEIRA, UMA HISTÓRIA QUE A HISTÓRIA DEVERIA CONTAR MAIS

Hoje, 28 de abril, a Estação Primeira de Mangueira completa noventa e dois anos de vida e só penso aqui que todo mundo tinha que conhecer pelo menos um pouquinho essa história incrível. Na verdade, todo mundo deveria conhecer era um poucão da história do Carnaval das escolas de samba, daquela gênese altamente inventiva no começo do século passado e que ainda dá pra perceber seus traços mais fortes em escolas como a Portela, o Império Serrano e a Mangueira, onde essa presença ainda é marcante ao extremo. Na Estação Primeira então… “Mangueira é um canto de fé, que leva o samba na poeira e no pé”.
São muitas as referências da verde e rosa na minha vida nesses anos dessa indústria vital, referências que espalham coisas muito mais do que o assunto Carnaval. Aproveito a efeméride e dedico aqui uns minutos pra lembrar algumas dessas coisas, como uma forma de fazer uma homenagem, pequena mas sincera, a essa bonita jornada.
A primeira referência que me vem à mente tem um gosto especial de lembrança boa, por vários motivos. É que minha mãe em um momento da vida se apaixonou por um moleque da Mangueira, bem mais novo que ela, com quem teve dois filhos, e que conviveu com a gente um tempo lá em casa. O Teba era uma figura, erudito, de fala empolada, um cara gente boa que, não fosse um desses transtornos tipo bipolaridade, borderline ou coisa assim, seria uma pessoa ótima de conviver no dia a dia.
Apesar de termos uma relação dessas bem conflituosas entre enteados e padrastos, um dia o sujeito me convidou pra ir com ele lá no alto do Morro, onde ele tinha um barraco e onde uma parte de sua família ainda morava.
Já vai aí uma pá considerável de anos, mas algumas lembranças desse dia ainda viveram bem nítidas na lembrança durante anos e algumas ainda existem bem firmes até hoje.
Com quinze anos, além de ler muito, eu já era envolvido com política, com grêmio, e já tinha conhecido algumas favelas por conta da militância, principalmente a Vila Ideal onde o amigo Gordo coordenava o núcleo do PT de lá. Mas nada se comparava ao que vi adentrando a Mangueira, subindo pelo famoso Buraco Quente.
Nunca gostei de romantizar a pobreza, mas ali tinha uma coisa que de fato só me dei conta muitos anos depois, que é uma certa aura de dignidade que existe em algumas pessoas independente das circunstâncias materiais. Como o Teba era um cara bem conceituado no morro, acabei trocando ideias com muita gente lá e essa impressão ainda sem nome ficou marcada em mim com força. O acolhimento, o bom humor, a comida, as zoações, a chuva de “bom dia, abença, deus-te-abençoe” que se ouvia em todo o canto.
As imagens também imprimiam forte na mente. As vielas, os pontos com esgoto escorrendo, as pessoas conversando na porta das casas, muita criança, o cheiro do café, a arquitetura mirabolante de alguns dos barracos. Lembro de ver alguns bandidos em alguns lugares da parte de baixo, sem ostentação, numa época em que o fuzil ainda não era o padrão de armamento das favelas.
Lembro que toda hora vinha à mente o famoso samba chicletoso do Zuzuca e ali descobri que não existia um lugar chamado Tengo-Tengo, mas que existia Santo Antônio e que o Chalé era lá no pico da colina e era onde morava a “fina-flor do bom-viver”, nas palavras do Teba, numa tradução bem boa do conceito de malandragem como os compositores do samba definiam.
Era o ano de 1988 e a Mangueira se preparava pra botar na Avenida um enredo sobre os cem anos da Lei Áurea, com um samba que ia marcar a história e que na época eu não tinha a menor ideia da amplitude disso.
Essa visita durou manhã, tarde e um pedaço da noite e desse dia em diante a Mangueira sempre me remeteu a algo bem maior do que uma escola de samba. Demorei anos pra entender e processar aquela visita. Na verdade todo cara com quinze anos é meio prego de certa forma e além disso a marra de adolescente te põe um véu de achar que se sabe tudo, que já entendeu tudo antes que te expliquem. Com o tempo percebi como perdi tanta coisa rica que eu poderia ter processado daquele contato. Mas o principal acho que ficou e marcou minha alma indelevelmente.
Uma outra vez estava no “esquenta” da Mangueira antes de um desfile no Sambódromo e me lembro a emoção da chamada da bateria e do discurso de alguém (que a memória falha, mas que devia ser alguém da diretoria) falando de como a Mangueira era uma nação e de que como foi importante pra luta política pela democracia, acolhendo e acoitando vários perseguidos pela ditadura. Parêntesis: todo mundo devia um dia ir à concentração de um desfile de escola de samba, nos minutos do esquenta – fecha parêntesis. Nesse dia eu chorei muito e me lembrei daquela visita da adolescência e pra mim se completou o sentido definitivo de uma frase que certa feita vi o mestre Rubem Confete dizer: “ a Mangueira é um quilombo”.
Com o tempo também fui anotando as profundas ligações afetivas da Mangueira com minha cidade, Duque de Caxias e isso foi e é muito legal de saber. Aliás, pesquisas que um dia serão publicadas de forma mais detalhada e que dão conta da aproximação carinhosa da Velha Guarda verde e rosa com a cidade.
A começar pelo grande Hélio Cabral que além de ser o mais conhecido membro da lendária escola de samba Cartolinhas de Caxias também teve destaque na Mangueira, sendo, por exemplo, possuidor da carteirinha de número 16 da histórica Ala de Compositores da agremiação. Aliás, é de autoria de Pelado, Padeirinho e Preto Rico, trio peso-pesado de mestres da composição desta ala, o primeiro samba do Bloco de Enredo Império do Gramacho, fundado em 1972, em Caxias. Aliás, o Império foi batizado pela Mangueira, em 1975, feito lembrado pelos baluartes do Bloco, hoje presidido por Emílio Reis, neto de Seu Clodomiro de Oliveira, bamba bastante considerado no metiê do universo sambista do Rio.
Lembro do amigo Cezar Moutinho, o Índio da Mangueira, um dos passistas mais famosos do país, figura carimbada no Carnaval do Rio. Lembro da Squel, caxiense, esbarrando com ela pelas ruas da cidade, já menina porta-bandeira, de corpo-alma denunciando no andar aquela certa altivez que vem de um reconhecimento de sua ancestralidade marcante. Aliás, depois lembro dela já brilhando na Grande Rio, e um dia, na Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro, em evento do amigo Neném Kantão, homenagem ao mestre Xangô da Mangueira, descubro que Squel é neta do hômi, grande destaque do mítico panteão mangueirense.
E o que dizer do desfile da Mangueira na Sapucaí em 2019, A História que a História Não Conta? Lembro no desfile das campeãs a comoção, uma bandeira gigante com o rosto da Marielle no setor um, o desfile arrebatador, o samba cantado a pulmões a ponto de explodirem, uma velhinha do nosso lado chorando e rindo, chorando e rindo sem parar, a gente vendo o povo pressionando o cordão dos seguranças ao final do desfile e invadindo a pista e seguindo com a Mangueira, tal como em 1984, milhares de pessoas até quase sete da manhã, até a bateria parar de bater já exausta pela quantidade de horas, o dia amanhecido, o Brasil dos poderosos expurgado, a alma lavada, as trocas cúmplices de olhares. A Mangueira nesse dia vingou o povo da melhor forma que sabe fazer: com música e verdade na veia. O Brasil popular profundo, a História de um país massacrado mas que não se entrega.
Pra fechar um comentário sobre Educação. Além de achar que se devia estudar a Mangueira em escola básica, penso que dariam ótimas aulas de literatura estudando os sambas do Cartola e os poemas do Carlos Cachaça, este um bamba da poesia a quem Aldir Blanc e Moacyr Luz chamaram de gênio da raça em um lindo samba. Dois intelectuais populares dos mais fecundos e que não devem nada em profundidade literária a vários autores canônicos que habitam as grades curriculares oficiais. Mas talvez ter dois poetas eruditos populares com os nomes de Cartola e Cachaça não seja de bom tom, né? Sei lá, só pensando aqui.
No mais é isso: parabéns à Estação Primeira de Mangueira e a essa história que vem sendo contada há 92 anos (ou serão 520?) com muita garra e afeto. Raiz é parada forte. Axé.

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[ heraldo hb – pitacolândia – abril de 2020 ]

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