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A festa de comemoração do sexto aniversário do site Agenda do Samba e Choro, em 2002, foi um acontecimento desses de fazer você acreditar no mundo.
Foi no Centro Cultural José Bonifácio, no coração da zona portuária, numa tarde de sábado lotada, muita emoção por tudo, pelo sucesso do site, pelas presenças do mundo do samba, pela ocupação daquele emblemático espaço e, principalmente, pela presença do homenageado do ano, o grande Wilson Moreira, espécie de ídolo máximo de todo mundo ali, uma referência musical, humana, quase espiritual.
Para a ocasião foi produzida uma publicação em forma de zine sobre o evento, com depoimentos e textos sobre a obra do Mestre. Guardei durante anos essa parada, mas perdeu-se nos caminhos das muitas mudanças de endereço. Alguém há de ter ainda.
Comidaria, cerveja a preço justo, muita música rolando esquentando o clima, várias atrações, até que chega o momento tão esperado da participação de Seu Wilson, cantando acompanhado por um time de músicos do melhor quilate – lembro de ter Luis Felipe de Lima no sete cordas e Galloti no cavaco, por exemplo.
Apesar do tempo passado me lembro de duas coisas com muita nitidez naquela tarde e uma delas é um momento mágico. A primeira lembrança é da abrição do show com Oloan, pérola que ele tinha acabado de gravar no disco Entidades I e foi como uma oração coletiva hipnótica, cartártica, a melodia como uma benção banhada sobre aquelas pessoas naquele lugar especial. E aí vai rolando o desfile sucessivo de obras de arte até que o Mestre começa a cantar Senhora Liberdade, parceria com o griô chapa Nei Lopes, música que é um dos hinos da anistia brasileira. E aqui faço uma pausa para abrir um parêntesis importante.
Havia alguns anos que Seu Wilson tinha sofrido um AVC que o deixou com sequelas nos movimentos do lado esquerdo do corpo, o fazendo se locomover com dificuldade, logo ele que além de tudo ainda era um exímio praticante da dança do samba, como atesta sua participação no Partido Alto, sensacional filme de Leon Hirszman .
Seu tratamento foi ajudado financeiramente por vários shows da rede de amigos do samba que chegaram junto. Sua recuperação foi boa, mas as sequelas ainda persistiam, cinco anos depois.
Aí volto ao momento mágico a que me referi acima, que começa quando Seu Wilson puxa o Senhora Liberdade. Canta a letra toda uma vez, com todos cantando juntos, e na segunda vez da música acontece uma coisa que me marcou profundamente naquele dia. Quando volta no início “Abre as asas sobre mim…” ele suspende o braço esquerdo até uma altura quase a mesma do direito e foi como se, numa suspensão do tempo, todo mundo tivesse sentido a mesma coisa, e ouviu-se uma estrondosa salva de palmas com aquele gesto, combinada por algo místico, um estalo invisível coletivo. Quando todos se olharam em volta, estava todo mundo com olhos marejados, se abraçando, encharcados de alegria e gratidão por poder presenciar aquele mestre recuperando seus movimentos e brindando a gente com seu corpo ali na frente entregue à música e à poesia, um momento sublime.
Talvez escrito assim dessa forma esse relato não tenha conseguido expressar o que foram aqueles minutos daquela tarde, mas acreditem, algo muito forte aconteceu ali.
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Na segunda metade dos anos 1990, sobretudo por conta do início da internet, em 1995, os mp3 do Audiogalaxy e principalmente por conta do site Agenda do Samba e Choro, um público que gostava de samba começava a entrar em contato com o universo da música de forma mais constante e ver que os mais-velhos estavam ficando sem espaço no mercado fonográfico, num momento em que a indústria do disco iniciava a radical transformação que se completaria nos próximos anos.
Desse momento foi se consolidando a expressão “samba de raiz”, que embora eu não goste, até consigo entender suas motivações na ocasião. Porque existia uma geração de sambistas “da antiga” que estava “vivendo em grandes dificuldades”, como o Antonico do samba do Ismael. Era uma vertente do samba formada por mais velhos, que não vendiam disco em quantidade como a molecada dos pagodes daquele momento. Muitos estavam em perrengues financeiros brabos mesmo. Poucos estavam gravando e mesmo assim vendendo muito pouco.
Tinha um cara que era japonês, Tanaka, que tinha começado há uns anos antes uma ponte para que alguns esses velhinhos gravassem discos no Japão e alguns desses discos deram uma salvada financeira em alguns desses compositores. Desses discos um que se destacou absoluto foi o Peso na Balança, do Seu Wilson, com ótimas canções, arranjos muito bons e ainda com o luxo do violão de Raphael Rabello largando o dedo. O disco ficou mais de dez anos sem ser lançado no Brasil… Okolofé também foi outro disco feito para o mercado japonês. Quando os discos foram lançados aqui ficou em muita gente essa questão incômoda: como pode uma obra dessas não ser gravada e lançada em seu próprio nesse país? Uma constatação diagnóstico. (Aliás, esses discos que esse Tanaka produziu são pérolas, todos eles, e parecem ter vendido bem lá no Japão).
Um parêntesis legal: uma campanha de financiamento coletivo da Agenda (quando ainda era vaquinha mesmo e não crowdfunding) conseguiu, por exemplo, lançar o disco do Argemiro Patrocínio da Portela, um trabalho simplesmente sensacional. Vale catar.
Pois bem, nesse cenário, com uma molecada de classe média querendo discos, indo a rodas de samba “de raiz”, Wilson Moreira nos brinda com o Entidades I, pelo selo Rádio MEC, com produção e arranjos do Paulão 7 Cordas, um disco de uma genialidade e generosidade incríveis. Era como se Seu Wilson olhasse essa gente meio perdida, meio deslumbrada, e dissesse “senta aqui, meu filho, que vou te mostrar umas coisas”. E ali é partido, calangos, jongo (com Nei Lopes), sambas de lamento, batuques, ritmos rurais, congada (com Grande Otelo), sempre com letras de grande alcance na alma, ancestralidade e doçura.
Wilson Moreira morreu com um disco pronto, Tá com medo, tabaréu?, que é uma obra que fala muito de infância e que mostra definitivamente toda a doçura, poesia e maestria da alma desse artista brasileiro. Como definiu com felicidade o jornalista sangue bom Leonardo Lichote, que fez talvez a última entrevista com ele: Seu Wilson era um “menino passarinho”.
Em tempos de “ouça em todas as plataformas digitais”, aconselho catar esses discos do Mestre e deixar as músicas banharem sua alma, uma aula do Brasil que vale a pena. Que pode servir de bálsamo pra esse momento tenebroso e baixo astral que vivemos.
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3
Também na meiúca dos anos 2000, num momento de vida solteira, passei uns meses de flertes com uma figura que me despertava bastante atenção e o papo pela internet foi rendendo, rendendo e, num sábado à noite decidimos sair pra conversar melhor ao vivo. E ficando subentendida a possibilidade concreta de um intercurso sexual, o que muito me empolgava naquele momento, confesso.
No tal sábado, saí de um trabalho no comecinho da noite e fui pra casa naquele intuito: tomar um bom banho, chamar aquele axé no espelho e partir pro centro do Rio pra encontrar a figura.
Só não contava que perto de casa, antes de subir o morrão onde morava, na Pauliceia, esbarro com a inauguração de um barzinho, um boteco minúsculo, quase ao lado da Tia Nice, com uma parte da rua fechada e cadeiras e mesas espalhadas. E em uma dessas mesas vejo as figuras de Wilson Moreira e Ângela Nenzy, sentadinhos, bonitinhos, sorridentes. Demorei a acreditar. Fui falar com o casal, que me atendeu com grande gentileza, o Mestre, como sempre, uma paz. Falei pra Ângela que tinha guardado com carinho a série de herois do samba em quadrinhos, que ela produziu e que sempre achei uma ideia genial.
Eles disseram que não iam demorar muito e tinham passado em consideração ao fulano dono do bar, que não lembro de jeito nenhum do nome.
Só sei que depois de um tempo liguei pra figura do meu compromisso e falei que não tinha como descer pro Rio, porque Wilson Moreira estava quase na esquina da minha rua e perguntei se ela talvez viesse pra Caxias e ficássemos ali curtindo essa.
Só me lembro da reação do outro lado do telefone “QUEM?!” e um comentário do tipo “você só pode estar de sacanagem”. Ainda tentei argumentar, mas não rolou encontro mesmo. E não rolou mais nem em outro momento.
Confesso que até hoje rio muito quando lembro desse “QUEM?”.
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É história conhecida a de que Delcio Carvalho quando disse a Nei Lopes que ele precisava conhecer Wilson Moreira, falou que o cara “botava melodia até em bula de remédio”.
De fato, existe uma coisa nas melodias de Wilson Moreira que são joias que vão entrando pelo ouvido e depois tomam todo o corpo e a alma e quando você vê já está saindo pelas ruas cantando “esse amor, me envenena…” e por aí vai.
É um tipo de melodia que tem Dona Ivone Lara, Wilson das Neves, Elton Medeiros, Cartola, Monsueto, entre tantos outros nomes de uma tradição que deveria ser estudo obrigatório no país.
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Olha isso, um das muitas enquadradas que já levei na vida, aqueles tapas que demoram a encaixar motivações. Início da juventude, com uma galera em tarefa de movimento social, levando “conscientização” e tal, com aquela coisa clássica, afobada, pouco respirada, a urgência da revolução, no calor da primeira eleição presidencial pós ditadura. Numa atividade em uma comunidade, na casa de um simpatizante da causa, uma avenida (morar em uma “avenida” faz sentido pra você?), um senhor (que podia ter minha idade agora porque pra quem tinha 18, depois de 40 já era senhor); pois bem um senhor, negro, com cara de poucos amigos, passa pela nossa reunião na avenida onde estávamos, com o LP A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes nas mãos, olha pra gente, aquele bando de jovens cheios de certezas e referências de livros e citações socialistas e diz que a gente tinha que entender era aquele disco antes de qualquer coisa.
No momento foi uma interrupção que não fez o menor sentido pra gente e ainda ficou uma péssima impressão da pessoa. Mas eu fiquei intrigado e só uns dez anos depois disso é que comecei a começar a entender o que aquele cara queria dizer… Hoje ainda tento entender, mas já tenho muitas percepções e pistas que me fazer agradecer àquele cara que foi na casa do parente pra pegar alguma coisa e resolveu lançar esse toque, mesmo sem ser solicitado. Jamais esqueci disso.
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Wilson Moreira, um ser iluminado, o Amor e a Música encarnados em forma de ser humano. Era tipo uma biblioteca nacional, procure saber.
Viverá pra sempre no coração do povo, mesmo que a maioria não tenha ideia, não ligue o nome à pessoa.
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[ pitacolândia – heraldo hb – dezembro 2020 ]
12/12 – #DiaNacionalWilsonMoreira