Samuel Machado ajeitou pela terceira vez a guirlanda na porta de entrada. Tinha trabalhado na repartição o mês inteiro esperando este momento. Sorriu ao imaginar o rostinho do neto Junior se iluminando ao ver a decoração natalina que havia espalhado pela casa, sentimento terno que o fazia bem. Deu uma andada pela casa, orgulhoso de sua decoração feita de forma totalmente solitária e gostou do resultado. Ao sentar na grande poltrona de sua sala teve de novo um sorriso incontido no rosto, desta vez com toques sarcásticos, ao pensar que o Natal era única vez no ano em que o vermelho, essa cor maldita, dominava seu cotidiano próximo e inundava sua casa. “Papai Noel, seu velho comunista safado”, pensou.
E era isso: depois de seis anos de distanciamento, seu filho Sandro finalmente voltaria ao lar – mesmo que por insistência sua e alguma, na verdade muita, relutância do filho. Samuel sentia dentro do peito uma alegria que era como um tambor batucando, um motor ronronando de leve, um foguinho aceso que trazia um pouco de alento e felicidade que não sentia há anos, principalmente depois que ficara viúvo e passara a viver só, casa trabalho trabalho casa.
O relógio marcava 15h30min do dia 24 de dezembro de 2022. Ainda tinha tempo de verificar se o peru estava descongelando adequadamente antes de sair para o aeroporto. Na geladeira, a sobremesa preferida de Sandro já estava pronta: pudim de leite, receita especial da falecida esposa. Um pequeno gesto de paz, um aceno, golpe certeiro para coroar esse possível reatamento que tanto bem já estava fazendo em sua vida.
Enquanto dirigia para o Aeroporto Internacional de Brasília, recordava as discussões acaloradas que teve com o filho; discussões que vinham de muito tempo, mas que se intensificaram muito em determinado momento. Política: a palavra que havia criado um abismo entre eles. Como deixara que ideologias fossem mais importantes que o amor? Como as coisas chegaram a este ponto? Não sabia responder.
Graças a Marta, sua nora, e principalmente ao pequeno Junior, as feridas começavam a cicatrizar, o orgulho amainava. Os últimos meses de conversas por videochamada haviam devolvido cor à sua vida solitária e o sorriso e as palavras do pequeno neto eram bálsamos louvados diariamente.
“Pai, não precisa se incomodar. Estamos sem grana agora. Podemos ir em fevereiro”, Sandro havia dito. Mas Samuel insistiu, enviou as passagens, planejou cada detalhe. Era sua chance de reconquistar a família.
Era dia de Natal e o famoso céu de Brasília estava particularmente bonito naquela tarde, com nuvens que pareciam algodão tingido pelo sol. Samuel estacionou o carro no local combinado, pegou o cartaz que havia feito com o nome do neto decorado com desenhos de super-heróis, e caminhou em direção ao terminal de desembarque.
Foi quando o mundo explodiu.
O estrondo foi ensurdecedor. Uma onda de calor o jogou contra a parede. Gritos. Chamas. Corpos. Caos. O cheiro acre de combustível queimado invadiu seus pulmões. Demorou a conseguir retomar o controle do corpo e da mente. Apavorado, suas mãos tremiam enquanto tentava, repetidamente, ligar para o número de Sandro. Em vão.
“Por favor, atende. Atende.”, murmurava, as lágrimas escorrendo pelo rosto envelhecido. “Por favor, filho.” No entorno, ainda as chamas e o descontrole total.
O cartaz colorido jazia no chão, parcialmente queimado. Ao redor, o caos se instalava. Sirenes. Pessoas correndo. Outras imóveis, em choque como ele. O céu antes sereno agora estava coberto por uma espessa fumaça escura.
As horas seguintes passaram como um pesadelo nebuloso. Samuel recusou-se a sair do aeroporto. Funcionários e policiais tentaram convencê-lo, mas ele permaneceu ali, agarrado ao celular mudo, observando equipes de resgate trabalharem incansavelmente.
Foi apenas na manhã seguinte, sentado em uma cadeira fria na delegacia, que recebeu a confirmação. O voo 1805 GIG-BSB. Nenhum sobrevivente. Sandro. Marta. Junior. Todos se foram em um instante de fogo e terror.
Na televisão da delegacia, manchetes sensacionalistas já chamavam o evento de “Natal Sangrento”. Números frios desfilavam pela tela: mais de trezentos mortos, mais de mil pessoas feridas. Um caminhão cheio de querosene de avião, uma bomba, um plano macabro exitoso. Um aeroporto em um dia cheio. Um grupo extremista de direita apontado como autor. Mas para Samuel, os números não importavam. Seu mundo particular havia acabado.
De volta à sua casa, a guirlanda ainda pendurada parecia zombar dele. O peru descongelado. O pudim na geladeira. Presentes embrulhados debaixo da árvore. A culpa o consumia como as chamas haviam consumido sua família.
“Venham passar o Natal comigo”, ele havia insistido. “Façam essa viagem”, ele havia pedido. “Eu pago tudo”, ele havia prometido.
Sentado sozinho à mesa posta para quatro pessoas, Samuel encarava o lugar vazio onde seu neto deveria estar. Sobre o prato, ainda estava o cartaz de boas-vindas, chamuscado nas bordas – última lembrança de um Natal que nunca aconteceu.
O silêncio da casa era um grito desesperado e triste. Mais do que nunca, estava sozinho. E dessa vez, não haveria mais videochamadas para aplacar a solidão.
@heraldohb
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este é um conto de ficção, mas poderia não ter sido.