ELIZETH NUMA HORA DESSAS

Tá muito difícil escrever sobre qualquer coisa que não faça menção a essa tragédia em que estamos metidos, seja a miséria voltando com força terrível por conta desse projeto de morte aos pobres, seja dolorosamente pela morte asfixiada causada pelo descaso à pandemia. É a fome clamando nas ruas; é todo dia uma lista de mortos pela covid que vão chegando cada vez mais no nosso núcleo mais chegado de conhecidos, familiares, pessoas que a gente admira. Pesado, triste, revoltante.

Mas daí que nesses dias de tristeza o Sr. Algoritmo, essa entidade mítica, fez chegar em alguma das minhas linhas do tempo uma propaganda de estreia de um musical dedicado à vida de Elizeth Cardoso. Sim, Elizeth que teve seu centenário timidamente comemorado no ano passado, num desses diagnósticos fatais sobre a cegueira do país. Eu mesmo fiz esse registro em rede social, mas fiquei de escrever sobre ela com mais detalhes e com o rolo-compressor do dia a dia ligado a todo vapor, fui protelando, protelando e deixei passar. Óbvio que sem cobrança, até porque queria escrever sem muita pretensão, mais pra mim mesmo e para o pequeno círculo de pessoas queridas que me lêem. Mas era preciso escrever sobre essa ilustre, especial figura. Escrever principalmente pensando nas mulheres que conheço que têm dedicado suas vidas à luta feminista em seus mais variados matizes; e a todo mundo que às vezes fica achando que tudo está no fim, que nada presta mais, que o Brasil acabou, que não temos um passado “glorioso” nessa terra alucinada e cruel. Escrever por desagravo. Escrever pra falar de uma figura incrível que nem todo mundo teve a felicidade de ouvir falar.

Pois bem, pense numa mulher jovem, sem grana, talentosa, negra, altiva, com dois filhos pequenos, botando um marido pra fora de casa, dirigindo um táxi e cantando na noite, isso nos anos 1940, no Rio de Janeiro. Pois é: Elizeth Cardoso. Se hoje essa descrição já é algo que se destaca, imagina na época.

Discussão sobre feminismo ainda não era acessível às camadas populares e mesmo no resto do mundo ainda não havia uma produção teórica consistente sobre o assunto. Quando a regra ainda era a régua masculina, principalmente no meio musical, Elizeth se impôs com a força de pioneiras como Chiquinha Gonzaga, Araci de Almeida, Ivone Lara, Elza Soares, pra citar algumas.

Existe uma biografia sobre ela escrita por Sérgio Cabral que tive a felicidade de ler ainda jovem e que, uma pena, perdeu-se em alguma das várias mudanças de casa e de vida. Um dos livros mais fascinantes que li. São tantos episódios incríveis que Elizeth protagonizou, antes e pós-fama, que poderiam alçá-la a ser uma personagem arrebatadora em qualquer super produção do Cinema mundial. As histórias de taxista na noite do Rio; o dinheiro juntado pra comprar uma casa própria – nossa, uma mulher sem marido! – a independência sexual, a vida apaixonada, o domínio sobre sua própria carreira. A biografia conta que quando ela morava, a contragosto dos pais, com o Leônidas da Silva, o Diamante Negro, um jogador famoso da época, ela adotou uma criança e o jogador a pressionou nos termos de “ou ela ou eu”. Elizeth não só botou o cara pra correr como registrou a criança como na categoria de “mãe solteira”, pra época um escândalo. E daí tu imagina o que citei aí em cima: uma mulher absurdamente talentosa, cantora, negra, artista, sagaz, marrenta, com dois filhos em uma época que isso era quase inadmissível… Essa era Elizeth. E quando cantava quebrava geral com a qualidade do fraseado, um veludo do agudo ao grave, a afinação perfeita, a elegância, a misencene classuda, o jeito de articular olhares e desenhos com as mãos. Divina era pouco.

Também chama a atenção o fato de que os primeiros anos de sua vida dizem muito sobre o povo nas primeiras décadas do século passado, sobretudo sobre a vida das mulheres negras. Nascida perto do Morro da Mangueira, na lendária rua Ceará (rua do Garage, pra quem viveu o rock bagaceiro em algum momento do Rio), Elizeth passou vários dos perregues que eram comuns ao povo, entre eles a necessidade de começar a trabalhar cedo. Além disso, ela é fruto também do fascínio que a música popular tinha em todos os cantos onde florescia o samba, o choro, a seresta e seus tipos humanos que tanto deram forma a um modo de viver/pensar/sentir/produzir nesses pedaços do planeta em volta da cidade do Rio de Janeiro. A música popular era popular no sentido mais preciso do termo.

Elizeth gravou 44 álbuns, sendo que o disco Canção do Amor Demais, lançado 1958, traz a batida peculiar do violão de João Gilberto pela primeira vez e é considerado, junto com o Chega de Saudade, do João, alguns meses depois, um dos marcos iniciais da bossa nova.

Elizeth é uma síntese possível do melhor do Brasil. E uma mulher à frente de seu tempo.

E cabe comentar: em um momento atual como o nosso, temos a felicidade de ter uma biblioteca potente como o Youtube, onde é possível ver vários vídeos de Elizeth em ação. Vale catar e se deliciar. E aí dá pra entender pelo menos um cadinho como ela era absolutamente apaixonante em tudo.

Bom, a divulgação do espetáculo que estreia dia 14 não diz muito sobre detalhes que serão apresentados na obra – é um musical – mas de qualquer forma tudo sobre Elizeth é válido e ainda é pouco. É uma figura tão mítica que sob qualquer aspecto seu apelido se confirma: a Divina (segundo consta, apelido dado pelo grande Haroldo Costa em um jornal da época).

No começo do texto comentei da dificuldade de falar sobre outro assunto que não nosso martírio atual perpetrado por um vírus e um verme, mas, de boa, penso que escrever sobre Elizeth tem a ver no momento – em qualquer momento do país. Porque faz lembrar de um Brasil incomparável, pujante e agregador; e também remete a constatação de que tantas Elizethes construíram e constroem esse país diariamente, com garra e talento. E que se nossas elites não fossem tão toscas e venais, se nossos meios de comunicação não fossem um monopólio lesa-pátria, talvez Elizeth Cardoso fosse uma dessas bússolas que teriam impedido de chegarmos à merda descomunal em que nos encontramos.

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[ heraldo hb – pitacolândia – abril de 2021 ]

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