Em 2016, a sonda Cassini começava seu processo de “suicídio” depois de vinte anos de ótimos serviços e do fim de seu combustível. Um mergulho mortal definitivo em direção ao mistério do espaço, no fim de uma missão exitosa que principalmente vasculhou e estudou o gigante Saturno, seus anéis e suas luas, com um grau de informação avassalador.
Uma morte briosa e não sem antes brindar os humanos com um show de imagens dessas de beleza sublime, que deveriam ser destaques em qualquer noticiário ou em qualquer escola nesse nosso planetinha azul e simpático.
Confesso que naquele momento adoraria ter vivido de fato esse show com mais afinco, curtido mesmo, desfrutado diariamente das imagens deleitosas que o equipamento começava a transmitir antes de seu anunciado fim. Mas não.
Não, não mesmo.
Primeiros meses de 2016 estava é envolto no clima pesado de um golpe de estado sinistro que se aproximava de seu desenlace no país em que vivo. Cujo epicentro foi o dia 17 de abril, data da infâmia brasileira, um show de horrores televisionado que culminou com a evocação pública de um torturador dos mais sanguinários que já viveu por aqui. Elogio gritado por um imbecil abjeto que, não sei se por acaso, hoje ocupa a presidência do país.
Uma nuvem de doença começou a se espalhar no ar desde então. Pode ser uma fraqueza, confesso, mas foi um momento difícil para admirar estrelas e avanços da Ciência quando os destinos do país estavam nas mãos de figuras nefastas como os eduardo cunha e outros gangsters da vida.
Dali daquele dia é como se as portas do inferno tivessem sido escancaradas e o salvo conduto para a morte, a tortura, a grilagem, os desmatamentos, o extermínio, enfim, um pacote completo de história do país tivesse sido condensado num arquivo aberto e celebrado publicamente.
Tenho pensado muito nisso nos últimos meses devido à quantidade incrível de informação fantástica que tem surgido oriundas dos ramos da Ciência como a Astronomia e a Astrofísica, dessas que são simplesmente fascinantes e que fazem cosquinha lá dentro da criança curiosa que mora dentro da alma da gente. (Apesar, obviamente, de muitos manterem essa criança sufocada, chantageada e silenciada…).
Essa semana foi o anúncio feito pela NASA da confirmação de água em estado líquido na Lua, o que tem várias implicações simplesmente sensacionais. Semana passada, a descoberta de vários exoplanetas, alguns idênticos à nossa Terra velha de guerra aqui. Semanas atrás o anúncio por diversas fontes da possibilidade de vida microscópica em Vênus. E por aí vai.
Só para ter ideia dessa enxurrada de notícias, só no mês de julho passado enviamos três missões para o planeta Marte, com fins diversos, incluindo uma missão da China e uma dos Emirados Árabes (isso mesmo!), primeira missão científica planetária liderada por uma nação árabe-islâmica. E uma dos EUA que está levando o Perseverance, um rover sinistro que buscará sinais de antiga vida de Marte nas rochas de crateras, e um helicopterozinho chamado Ingenuity, que vai fazer alguns voos rápidos para testar qualé desse tipo de veículo no espaço aéreo marciano. Esta será a primeira exploração aérea de um mundo além da Terra. Isso tudo em julho agora, em meio ao mundo como conhecemos se desmoronando. Se isso não é fascinante e deveria ser pauta mundial, não tenho dúvidas.
Mas não é e não será.
Daqui dessa noite primaveril vejo o ponto avermelhado de Marte no céu e me pergunto onde foi que perdemos o fascínio pelo mistério do mundo. Quando o espaço sideral deixou de ser uma régua pra se pensar o estar vivo nesse planeta. Pensando o basicão: a grandeza do Universo nos pode ensinar muito, nos mostrar de forma definitiva como somos um micro-grão de poeira nessa história toda.
Mas hoje é isso: estamos aqui aprisionados pelos fundamentalismos que nos ameaçam a vida, literalmente. Estamos no século XXI mas ainda tem gente preocupada com a sexualidade de quem nosso vizinho faz sexo.
Ainda há milhares de crianças que estão nesse momento indo dormir de barriga vazia, ante o olhar desesperançado de uma mãe, mesmo com a abundância de alimentos produzidos. Como pode isso?
Ainda temos uma bancada parlamentar paga pela indústria assassina da arma. Ainda convivemos com um ministro pago com dinheiro público pra acabar com nossas florestas. Ainda convivemos de boa com um jovem assassinado a cada 23 minutos no Brasil.
Vivemos uma barbárie que hoje é saudada por uma horda criminosa, chefiada por uma gangue barra pesada.
O desprezo e o combate à Ciência que estamos presenciando é o ápice da desgraça em que nos metemos. Além do assassinato físico estimulado por esses grupos (ou tolerado solenemente por setores significativos da classe média), há em curso o assassinato dos sonhos, das possibilidades da imaginação.
O poder miliciano também mata o espaço sideral dentro de nós.
É sinistro.
Só sei que em março eu quero ver a Perseverance descer em Marte e dar aquele rolé bonito no planeta vermelho (“o nosso planeta jamais será vermelho”), dando pinta por lá, e pretendo ver muita foto, muito vídeo, muita notícia. Fazer aquilo que, por conta desse baixo astral que nos saqueou, não consegui fazer com a Cassini. Vocês me devem o show da Cassini.
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[ pitacolândia – heraldo hb – outubro 2020 ]