Dona Eneide e a generosidade

Por conta do meu trabalho, nos últimos anos tenho participado de palestras, rodas de conversa e debates por aí e voltemeia me vejo falando de generosidade, uma marca que identifico muito forte quando tento compreender as contribuições que as camadas populares desse país têm dado ao longo dos séculos pra nossa história. Todas as invenções, comidas, cultura, música, danças, receitas, engenhocas, insights de conhecimento que são aquilo que pelo qual o Brasil se destaca no mundo. Legado que é historicamente privatizado e vendido por segmentos de uma elite econômica que é altamente racista e patrimonialista.

Tudo bem que pode parecer de um esquematismo barato, mas é por aí mesmo minha percepção: há uma generosidade no povão que é uma benção mesmo, uma riqueza imensa dessa nação linda e cruel, desse país continental, tropical e violento.

E nesses dias pessoalmente difíceis é que me dei conta de que generosidade era uma característica muito presente na vida da pessoa de Dona Eneide e essa percepção sempre esteve presente em minha vida por conta da convivência com essa figura, mesmo que só intuitivamente eu tenha percebido ao longo dos anos. Hoje está claro.

Lembro de que ainda moleque ficava intrigado quando ela dizia estar triste quando chovia nos finais de semana, principalmentes feriados emendados. Certa feita ainda menino cheguei a perguntar o porquê disso, uma vez que ela nunca ia à praia, por exemplo. E lembro dela falando que sentia por tanta gente que trabalhava tanto durante a semana e que merecia curtir ao menos uma praia pra descontrair… Essa conversa ficou muito marcada em minha mente a vida inteira e ilustra bem o sentimento de generosidade que corria ali naquela figura.

Ou o curioso mistério do fato de que nossa casa era praticamente uma espécie de entreposto de roupas usadas… Sem nunca ter tido ligação alguma com associações, partidos, igrejas, ela conseguia fazer com que muita gente deixasse roupas pra doação lá em casa, principalmente roupas de criança, junto com retalhos e demais materiais do seu ofício de costureira. A movimentação de roupas sempre era intensa e isso durou anos.

Ou ainda o fato de que, mesmo com uma vida de apertos financeiros brabos, ela sempre vivia ajudando pessoas em situação de dificuldade. Como isso acontecia? Impossível explicar. Só mesmo sintonizando com a tal generosidade.

Outra lembrança legal foi a ideia de costurar número nas camisas do Flamengo que a maioria de nós moleques do bairro tinham e que vinham da loja sem número. Ela pegava retalhos brancos e ia dando vida ao sonhos dos Zicos, Titas, Nunes e Adílios da Chacrinha. Depois de adulto é que fui entender como isso era incrível praqueles moleques e molecas, quase todos negros, quase todos de famílias nordestinas, quase todos com a figura do pai ausente, criados entre a escola e a rua, naquele lugar sem estrutura urbana nenhuma, estigmatizado, reduto de matadores aliados a policiais, abandonado pelo poder público, debaixo de uma ditadura militar. Mas, nossas camisas tinham número e era Dona Eneide quem costurava.

Também cresci com uma desconfiança, um considerável pé atrás com “publicidade de caridade”, certamente por conta de dona Eneide. Isso porque nunca vi em nenhum momento ela se valer dessa sua característica de caráter pra poder se vangloriar disso.

E esse desprendimento era uma marca forte também.

Desprendimento que falando assim chega às raias do chocante… Por exemplo, várias vezes que ela saía para trabalhar como doméstica na Zona Sul do Rio, como várias mães de lá, ela me chamava, eu ainda menino, o mais velho, pra dizer onde o “dinheiro da casa” estava. Era outra frase que sempre repetia: a gente nunca sabe o dia de amanhã e a gente sempre tinha que estar preparado para o inesperado. Lembrança essa que vem com força grande e enternecedora nessa semana de sua partida desse plano.

É como um outro efeito colateral dessa convivência que é a dificuldade que tenho com a ênfase em discursos morais/moralizantes… Porque ela ensinava ética pra gente, só com os exemplos.

Outra: ela não gostava de Natal, dia das mães, datas comemorativas de um modo geral. Do jeito dela, Dona Eneide era meio anarco-punk e meio beatnik, de uma espécie de anarquismo potiguara, a etnia indígena predominante lá em Belém da Paraíba, de onde veio com boa parte da família pra construir vida nova em Caxias e na Maré, ali na Baixa do Sapateiro, onde chegamos a morar.

Na época de criança e na adolescência, nossos amigos adoravam ela por a verem como alguém sem frescuras e moralismos, sempre com um sorriso engraçado que ela tinha. “Pô, tua mãe é muito maneira”, a gente ouvia sempre. Décadas antes de virar pautas de redes sociais, Dona Eneide já defendia os homossexuais, falava contra o preconceito racial e a exploração financeira. E vivendo isso de verdade.

Praticamente sem estudo, ela tinha uma visão da vida extremamente prática e gostava de ler curiosidades como as matérias da revista Superinteressante – ela sabia que o mundo era grande. Não se subjugou aos homens, criou cinco filhos, gostava de alegria, de falar sacanagem, de forró de duplo sentido, de zoar, do jeito dela, com os políticos, os pastores picaretas e gente metida à besta.

Sim, nesses dias me caiu essa ficha de que muito da minha filosofia de vida, minha visão de mundo, eu herdei dessa mulher, uma guerreira paraibana, uma pessoa extremamente musical, uma brasileira dessas como milhares que ergueram no braço, na ternura e na garra, esse país.

Dona Eneide

Três gerações de paraíbas brasileiros

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