Para quem nasceu e cresceu na ditadura militar e ainda traz no peito uma fé em que as coisas possam ser diferentes no país, esses últimos dias têm sido de uma alegria indisfarçável. Para quem já nasceu e cresceu no pós-ditadura e sente na alma a possibilidade de um país diferente, esses últimos dias têm sido de um frescor que é impossível não ver estampado na cara, saltando feliz dos olhos.
Mas, no caso dos primeiros, é bom deixar claro o que é um país diferente: aprofundamento da democracia, reforma agrária, distribuição de renda e uma comunicação democrática e plural. Muitas são as demandas (Educação e Saúde públicas e de qualidade, por exemplo), mas basicamente é isso, uma espécie de patamar mínimo para que o país venha a superar sua história de rolo-compressor contra seu povo.
E aí é que saltam dois pontos que têm sido pouco colocados com a devida clareza nos debates, dadas suas importâncias nesse momento.
Com tantos anos de repressão, estados de exceção, terrorismo estatal, massacres, omissões e apagamentos, e mais recentemente, a privatização escandalosa de tudo o que é público com direito a deboche e cinismo por parte dos poderosos, é compreensível que um momento de eclosão popular como o que temos visto traga todo o tipo de demanda reprimida para a arena política. Sem líderes definidos, com a linha de frente formada principalmente por jovens e com a Rede como principal aliada, as manifestações têm surgido com uma força de uma tsunami, trazendo com ela todo um caldeirão de sentimentos, necessidades, vontades e catarses. Compreensível.
Mas, há um aspecto preocupante no ar que tem a ver com um tom perigosamente moralista, encaretado e elitista, muita vezes usados por quem sabe do que está falando e muitas vezes repetido por quem vai na emoção e não reflete um pouco sobre as consequencias disso.
Historicamente, esse discurso “acima dos partidos”, de combate à baderna, à corrupção, à bandalheira, sempre levou o país para o buraco, períodos sombrios em que os pobres sempre foram os que mais se lascaram. A vassoura do Jânio, a Marcha da Família com Deus e pela Propriedade, a UDN do Lacerda, os militares golpistas, a caça aos marajás do Collor, são alguns dos exemplos de momentos de tensionamentos políticos em que esse discurso fácil e irracional acabou empurrando o país para momentos sinistros. Por isso é sempre bom estar atento, conversando com o coleguinha do lado, levando essa conversa para outras esferas da disputa política. O combate à corrupção se faz todo o dia e é com participação popular, com garantia de direitos, com envolvimento em lutas por maior controle social; não é gritando um discurso vago, sem foco nas causas, sem entender que é a própria máquina que está em jogo. A direita adora o discurso contra a corrupção. Podemos até não identificar mais o que é a esquerda hoje, tudo bem; mas a direita, sim, sabemos facilmente quem é e ela continua em sua maior parte como sempre foi: extremamente corrupta, elitista, racista e com saudades dos “velhos tempos”.
Outro ponto a salientar é que essas semanas tem colocado em xeque o mito costumeiramente difundido de que o brasileiro é um conformado, um otário sempre manipulado, levado por cachaça, samba e futebol. Com muitas variações esse é um discurso direitoso que tem forte adesão principalmente nas camadas médias das grandes cidades; um discurso de quem não entende nada do que é o Brasil profundo, o país que não aparece nas telinhas, um povo que tem se reinventado há séculos, que tem um pé na tradição e outro na contemporaneidade, antes mesmo dos teóricos bacanas de agora descobrirem e pensarem os conceitos que têm feito a cabeça da rapaziada. Um povo do tambor e do computador, mesmo quando esse não chega a todos como deveria.
Um povo que dança, que festeja, que sabe viver, que trabalha duro, que faz a melhor música do mundo, que é ordeiro sim, porque é generoso. Isso não é sinônimo de passividade nem nunca foi. Talvez – veja bem, talvez – tenhamos criado gerações mais desconectadas da participação política a partir do trauma pesado da ditadura militar, que teve seu declínio justamente quando o american way of life estava sendo massificado ao extremo pelo monopólio da mídia. Mas, é uma suposição, uma vez que, ainda assim, manifestações críticas continuaram rolando em todo o país mesmo nesse período pós-ditadura e pré-Internet.
A História do Brasil é fartamente recheada de resistências e lutas pela liberdade e pela participação política mais ampla, movimentos históricos duramente reprimidos pelo aparato escravocrata e concentrador de renda, cujos herdeiros continuam por aí como fantasmas a assombrar nossa democracia. A Balaiada, a Confederação dos Tamoios, a Sabinada, a revolução Farroupilha, Canudos, a República Guarani, a Cabanada, a Revolta dos Malês, dos Muckers, do Vintém, da Chibata, da Vacina; a Praieira, a resistência ao Bota-Abaixo, a Coluna Prestes, as revoltas contra a carestia e o saque popular de 1962… A organização de centenas de mocambos e quilombos pelo país afora, onde só Palmares durou mais de cem anos… Os vários levantes dos tupinambás, dos cariris, dos aimorés, dos potiguares; a Conjuração Baiana, o impeachment do Collor, as frentes de resistência à ditadura…. E os quebra-quebras contra a situação humilhante dos trens, os protestos contra os serviços das barcas, a luta contra as remoções arbitrárias, as diversas frentes do Movimento Popular por Moradia, o heroico MST, o maior movimento popular organizado do mundo, hoje covardemente criminalizado pela grande mídia brasileira…
O Brasil vem se construindo, reinventando, improvisando, trabalhando e experimentando um jeito de estar no mundo que é diverso e empolgante. Mas, não custa ficar atento, se não a gente vai repetindo o discurso dos que representam até hoje o atraso, a infelicidade e a barbárie.