Até a meiúca dos anos noventa muitas rádios ainda se alimentavam basicamente de discos cedidos por gravadoras e havia um dia na semana que a EMI recebia programadores de rádios de todo o Rio pra distribuir CDs promocionais com as músicas de trabalho dos artistas do cast, além de material de divulgação.
Na Quarup FM esse era um trabalho que eu fazia questão de fazer pessoalmente porque era muito maneiro e sempre pintava coisa boa em meio às farofas de sempre. A Emi funcionava na Muniz Barreto, em Botafogo. Encontrava sempre uma galera alucinada de rádio por lá, muito assunto, muita zoeira e informação e o maluco que fazia a distribuição parecia que ia com minha cara, pois sempre arrumava umas coisas mais alternativas que não iam pra todos. Posso dizer também que a mossa rádio tinha uma certa “faminha” em alguns segmentos, principalmente por estarmos sempre aparecendo nas colunas do Tom Leão e do Calbuque, no Segundo Caderno do Globo, na época um caderno bastante considerado. Sim, principalmente por conta do Os Argonautas, tocado por Carlos Eduardo Lima e Leonardo Salomão, que pautava uma boa parte da mídia que estava escrevendo música alternativa naquele momento (sei que parece exagero dizer assim, mas era isso mesmo). E o Programa de Índio, do Reginaldo Ferreira, figura que é central nesse texto aqui. No Programa de Índio tocava muita exclusividade e boa parte das bandas independentes daquele momento, incluindo as que estavam nos selos Rock It, Tamborete e Midsummer Madness.
Daí que teve um desses dias em que fui pegar discos naquele clima de sempre e em um momento o programador me chamou no canto pra dizer que tinha uma coisa boa, mas não tinha pra todo mundo. Era um CD com uma entrevista do Renato Russo só com as respostas gravadas e um encarte com a perguntas, falando sobre o Equilíbrio Distante, disco que tinha duas músicas que estavam “estouradas”, como se falava, entre elas La Solitudine, que botava o povão pra cantar naquele italiano pomposo.
O maluco deu o toque: dava pra passar pra MD, escolher um locutor bom, descontraído, e montar bonitinho, sucesso certo na rádio. Fiquei empolgado com a ideia e parti pra rádio direto, chegando de noite com vontade de editar o negócio imediatamente.
Chegando na rádio, contei a ideia pra o DJ Mito, nosso programador, e por sorte, o Gladson Cavalcanti estava na área, apesar de seu programa ser de manhã, o Show Contagiante. Sorte porque Gladson é muito safo, comunicador nato, e comprou a ideia na hora e já começou a ensaiar os textos das peguntas. Mito começou a editar empolgado, ele que era na época um dos poucos caras que operavam o MD da Sony com incrível rapidez e nós tínhamos dois aparelhos, o que permitia edição digital naquele momento com grande qualidade. MD, de Mini Disc, era um formato muito bom pra época, que a Sony forçou uma exclusividade e acabou não vingando como padrão.
Vale o parêntesis que essa empolgação também vinha do fato de que a rádio tinha uma ligação forte com Renato Russo e a Legião Urbana, além dos fãs próximos, por conta do Reginaldo Ferreira, aquele do Programa de Índio. Reginaldo tem uma história que daria um filme bacana. Foi roadie da Legião, assistente de produção de alguns discos, amigo pessoal da galera de banda e um cara a quem o Renato tinha um carinho muito grande. Por conta da ligação do Reginaldo a rádio tocava algumas coisas preciosas, já tínhamos recebido o Dado Villa-Lobos no estúdio e ainda por cima, Renato tinha gravado uma saudação dele exclusiva pra rádio (quanto não valeria essa vinheta hoje, rapaz…).
A gravação ficou perfeita. Edição tinindo, Gladson com uma espontaneidade sinistra, no tempo certinho, parecia mesmo que o Renato Russo estava em pessoa no nosso estúdio; e, cereja do bolo, fechando com a vinheta do cara mandando o alô pra rádio. Lógico que também rimos muito dessa “falsificação”, mas que ia ser legal, sabíamos que seria.
Acabamos tarde e fomos pra casa felizes, já imaginando o programa rolando sábado à tarde, pra alegria dos fãs e uma tiração de onda danada nossa.
Eu vivia dentro da rádio e chegava bem cedo e no dia seguinte, logo ao chegar o telefone toca e era a Adriana, na época companheira do Cristian, também locutor. Aos prantos, em desespero quase sem conseguir falar, ela manda a notícia: Renato Russo tinha morrido nessa madrugada. Era onze de outubro e me lembro até hoje da confusão de sentimentos que me veio ao desligar o telefone. Não tinha televisão na rádio, mas na sequência, via rádios e via telefonemas a notícia foi sendo bombardeada naquela manhã.
Quando o resto da galera da rádio foi chegando e falamos da “entrevista” que iria ao ar no sábado rolou uma proposta de transmiti-la nesse dia mesmo. Fiquei incomodado, por me parecer meio oportunismo barato, mas acabamos no começo da tarde transmitindo nossa entrevista especial com Renato Russo, com direito à nossa vinheta exclusiva e entremeada com músicas do cara.
Foi uma reação explosiva. Dezenas de amigos e conhecidos chegaram no estúdio, gente chorando, o telefone não parava de tocar e nesse dia confirmei como Renato Russo era mesmo um ícone. Tivemos que repetir o programa umas duas vezes nos dias subsequentes.
Infelizmente a versão editada de entrevista se perdeu em meio ao tempo, à desorganização e à precariedade – fitas de MD eram caras e quase sempre eram reaproveitadas, o que provavelmente pode ter acontecido. Ainda sonhei que um dia poderia chegar uma fita cassete com o programa gravado por algum fã, mas isso nunca aconteceu.
Deixo esse registro aqui como uma forma de lembrar da figura de Renato Russo e dividir um dos curiosos momentos de bastidor da nossa Quarup FM, a rádio que tocava Caxias, em 1996.
[ heraldo hb – outubro de 2020 ]