Coisa que sempre fascinou a Humanidade ao longo dos séculos foi a existência de sociedades secretas, dessas sobre as quais se formam todo um conjunto de mítica e atração. Dos mais variados formatos e com os mais diversos fins esses grupos mexem com a imaginação de uma forma arrebatadora, mesmo quando existe mais lenda do que realidade de fato. Só os Cavaleiros Templários, por exemplo, são responsáveis por zilhões de publicações, seriados, reportagens especiais, séries, filmes e muito, muito debate sobre suas lendárias atuações.
Digo isso porque eu mesmo já fui fundador de uma sociedade que, se não chegava a ser secreta, era pelo menos levada bastante a sério enquanto durou, com todos seus rituais e cobranças específicas. Para muitos o objetivo não era assim tão nobre, mas para nós era de vital transcendência: a Sociedade dos Bebedores de Cerveja no Gargalo. Não durou muito por motivos até bem simples. Além da falta de sentido per si – o que não nos preocupava – as saídas em conjunto não resistiram aos apertos econômicos da época e à estranheza de amigos e namoradas ao ver seis marmanjos tomando cerveja como animais, cada qual com sua garrafa de 600 ml. Admito que deveria ser realmente estranho.Mas desejo tornar público a partir de agora a existência de um grupo que durante um considerável tempo existiu de forma clandestina, incógnita, e que exigia de seus participantes um grande dispêndio de energia carmicastralquímica.
Espero que meus confrades da época compreendam as reais necessidades que me impelem a tornar público esse fato. Sei que corro sérios riscos de retaliação, mas os motivos deste ato ficarão óbvios e resolvi correr esse risco, quebrando um juramento feito com palavras molhadas a doses consideráveis de álcool.
Era o ano de 89 e a expectativa de votar para presidente impregnava o ar de uma forma mágica e embriagante. Não se votava para presidente desde 62 e o governo Sarney se mostrava exatamente o que se imaginava: uma fachada de democracia em meio a um estado completamente endividado, falido e com os vícios de autoritarismo e corrupção reforçados pelas mais de duas décadas de ditadura. Por isso, o clima era de iminência; falava-se em golpe, em retrocesso; nas escolas e universidades a discussão era Brizola ou Lula para presidente e se, no caso de vitória de um ou de outro, haveria posse.
Éramos um grupo de amigos dos mais variados interesses, ávidos por discussões de qualquer espécie, desde que regadas à alguma substância inebriante, preferencialmente cerveja, cerveja com steinhagen, conhaque ou batida de limão.
Eu presidia o grêmio estudantil do Instituto de Educação e esse era no momento um local privilegiado do ponto vista de efervescência. As proximidades da escola eram as preferidas para todo tipo de reunião e eu tinha algumas desconfianças de que muito dessa preferência vinha do desfilar constante e desabrochante das normalistas e seus uniformes fetichais. Mas isso era cisma minha, confesso. Integrantes do movimento estudantil de várias escolas da cidade, os trotkistas da Convergência Socialista, rockers, punks, grupos de teatro, músicos e malucos em geral, o Instituto parecia ter um ímã para atrair energia ebulitiva à sua volta.
Era uma tarde invernal e ventava.
Havia um horário em que as meninas que andavam com a gente ainda estavam estudando e essa era a nossa deixa para pôr em dia alguns dos assuntos, digamos, de homem. Daí paramos no bar rotineiro para acertar os ponteiros das ações agitativas e fazer as resenhas do dia, trocar expectativas e falar dos inúmeros três assuntos de sempre: música, mulheres e política – a ordem nem sempre essa.
Foi quando reparamos que do rádio saía outra música do Raul Seixas… Estranho… Havia acabado de tocar Guita e a rádio era dessas que odiávamos então. Qual surpresa não foi ouvir mais uma… Três músicas seguidas.
Raul Seixas era um dos nossos mitos vivos mais caros. Um herói, um representante visceral de nosso vômito a toda porcalhada que nos cercava. Vivia off-mídia, em total decadência, zombeteiro e contraditório. Poética cortante, cínica e rebelde, plunct-plact-zum zumbizando como uma mosca na sopa da babaquice. Tirando a dupla com Marcelo Nova, ex-Camisa de Vênus, Raul definhava, mal e debilmente aparecendo em público sempre em estado de constrangimento midiático.
Ao fim da terceira música, a explicação para tal fenômeno radiofônico nos bateu como uma bomba: Raul tinha morrido! Puta-que-o-pariu! Raul morto! Absortos, desligados, não tínhamos tomado conhecimento dessa fatídica notícia.Um silêncio nos abateu sem dó. Um misto de revolta, dor, tristeza e sei-lá-o-quê. Eles venceram de novo. Vão pro caralho – pau no cu!
Começamos ali mesmo o que seria o resto daquele dia: beber até cair, cantar as músicas de nosso ídolo e vagar por nossa cidade de merda e sua rotina medíocre.
Lá pelas tantas, em algum bar perdido, depois de várias cervejas e afins, a noite adiantada, reparamos que as rádios, mesmo as odiadas, não paravam de tocar músicas do Raul.Em um desses momentos foi que as coisas se deram. Nos entreolhamos e, sem que combinássemos, decidimos fazer alguma coisa à altura de nosso herói. Como forma de gratidão teria que ser algo nobre, espiritualmente sacana e que fizesse jus a seu legado.
Daí veio um pensamento lógico, arrebatador: se a música de Raul está tocando tanto nesse dia, em tantas rádios diferentes, em tantos canais de televisão diferentes, imagina quando… Meus Deus, imagina quando… Quando…
Foi nesse dia, na cidade de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, agosto de 89, que foi fundada por cinco loucos adolescentes uma organização que durante anos viveria em trabalho espiritual vital, secreto e constante, zelando por nobilíssima causa.
Esse foi o dia da criação da Corrente Mística Fraterna Ultra-Secreta Vida Longa a Roberto Carlos.