EMPREENDEDOR EM ASFALTO QUENTE

Janeiro aqui na cidade, meu chapa, é de cozinhar os miolos, sem massagem. E foi num dia assim, desses bem infernais, descendo a Brigadeiro, que vi o empreendedor no asfalto quente.

“Tá lá o corpo estendido no chão”, diz aquela música de Blanc e Bosco que é uma crônica impressionante da vida surreal nas cidades do país, e foi a primeira coisa que me veio à mente quando vi a cena ainda de longe. Felizmente, diferente da música, o corpo não tinha perdido a vida, apenas repousava no chão ladeado por curiosos e um guarda que tentava alguma solução pra aquele episódio estragador de seu dia. Clássico fechamento de carro, com omissão de socorro, trânsito frenético, buzinas, mais um dia massacrante nessa metrópole frenética.

O sol do cão só piorava as coisas, o empreendedor estatelado ali no asfalto quente, as pessoas, o trânsito, o tempo empatando a vida da urbe. Leva ele pra sombra, não, não mexe nele não, pega água pra ele, a ambulância tá chegando, é, eu vi na televisão que a orientação nesses casos é não mexer no corpo, sempre diz alguém que parece entender de primeiros socorros.

Sem muito o que fazer depois dos encaminhamentos dos voluntários de ocasião, me aproximo um pouco mais e dou uma olhada melhor na cena toda e reparo o empreendedor, que agora está sentado, olhando as escoriações, tentando interagir. Nos olhos do moleque apreendo sua apreensão, sua expressão assustada entre a incredulidade e a raiva, com leves notas de certa tristeza. Chuto uns dezoito anos, talvez dezenove, talvez dezesseis, o empreendedor moleque. Corpo franzino, bigodinho ralo, pele escura, chinelo surrado como deve ser seu dia a dia de colaborador em umas dessas grandes empresas de delivery.

A caixa vermelha no chão, provavelmente um lanche bagunçado que não será entregue, provavelmente um cliente puto, reclamando e dando deslike em algum aplicativo. A bicicleta entortada talvez tenha conserto, o corpo do empreendedor provavelmente sim também, mas é de imaginar que pras duas necessidades falte dinheiro. É osso, mano. Provavelmente alguns dias ou semanas sem conseguir entregar nada. Tem que ter fé, meu filho, como diz umas das mulheres do entorno.

Ambulância chega, aos poucos o povo dispersa, vida que segue, é o risco do empreendedor, é o jogo como é hoje, cada um no seu corre, é assim mesmo. É a vida. Empreendedorismo roots, a selva. É assim mesmo, pelo menos não tá roubando, ainda sai vaticinando um senhor marombado em músculos e certezas.

O sol é escaldante, o asfalto quente, a chapa quente, o chão da cidade é lava vulcânica que ainda vai explodir sério, mas não será hoje. Hoje é apenas isso, alguém não recebeu sua comida e já deve estar em alguma rede social expurgando sua raiva. E ao empreendedor resta… Não sei, sinceramente não sei. Só sei que tem dias que o calor aqui é brabo, meu chapa, quente mesmo.

[ heraldo hb – janeiro de 2020 ]

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