Essa parada da pessoa morrer, né, é a única certeza da vida e tal e coisa, taí os livros de autoajuda, as religiões e coisa e tal, mas porra, é foda. Mesmo a gente sabendo que vai rolar um dia, essa parada sempre deixa a gente meio bolada, não tem jeito. E lidar com a perda é sempre difícil, ainda mais quando é gente próxima, gente querida, gente que dialoga com o teu íntimo corpoalma.
E esse 2018 que se finda foi difícil pacas nessa seara, além de tantas outras dificuldades. No meu caso, só de amigos queridos foram três, assim com espaçamento próximo demais – Martha Rossi, Marivaldo Salles e João Carpalhau. Martha Rossi a gente ainda sente brandamente porque essa viveu bastante, noventa e quatro anos de amor e dedicação, teve tempo pra curtir muito, pra ser bastante amada. Mas, Carpalhau e Marivaldo doeu muito mesmo… Carpalhau, JP, genial, anárquico, espaçoso, engraçado, inteligência sagaz, um talento desses inspiradores pra vida. Marivaldo Salles, meu irmão preto, um doce de pessoa, um coração gigante, um talento absurdo, um corpo onde a Música habitava com força, qualquer instrumento de pele ou de corda em que botava a mão dava pra sentir a beleza da ancestralidade que tanto abençoa esse país. Pessoas que morarão aqui no meu coração pra sempre.
2018 também foi marcado por levar três dos grandes mestres que eu humildemente acompanhava, Raquel Trindade, Wilson Moreira e Nelson Pereira dos Santos. Dona Raquel de tantos predicados que fica difícil falar, griô de uma família abençoada desde os pais até seus filhos e netos que levam orgulhosamente seu legado. Wilson Moreira, um gênio da música popular, um mestre da cultura brasileira, poeta inspirado, uma pessoa de coração que cabia o mundo inteiro. Nelson Pereira dos Santos… Porra, já escrevi tanto sobre Nelson que nem sei mais o que dizer. Sempre falo que uma parte gigante de meu coraçãocorpoalma é um misto da influência de Gilberto Gil e Nelson Pereira dos Santos. Também três pessoas que carregarei pra sempre na memória e na ação de tudo o que eu vier a fazer.
Também partiu a fabulosa Dona Ivone Lara, mulher sobre a qual o país deveria ter parado em sua homenagem quando da sua morte. Uma história de vida que há anos digo que valeria um lindo filme desses de arrasar com corações mundo a fora.
Perdemos Marielle. NADA NADA NADA NADA NADA vai aplacar totalmente essa perda, essa indignação, essa infâmia. Dor só amenizada pela constatação das Marielles que estão florescendo país a dentro, frutos que dão um pouquinho de alento pra o futuro que virá. Marielle presente.
Paul Singer que me deu muita inspiração pra pensar política nesse país.
Arthur Maia, mais que um músico genial e um importante agregador cultural, foi um cara que marcou a vida de muita gente da minha geração, nos tempos de tucanos bicudos neoliberais onde a gente saía em bandos pra catar shows de graça e onde Cama de Gato era uma dessas bandas que a gente vivia esbarrando por aí.
Nessa bad de final de ano ainda perdemos aos quarenta e cinco do segundo tempo a Miúcha, dona de um sorriso de uma alegria dessas desarmadoras de bode; o Amos Oz, escritor israelense talentoso, uma das vozes mais lúcidas a pensar e propor ações para a paz no Oriente Médio. Com a coincidência triste de morrer no mesmo dia em que o sinistro Benjamin de lá se encontra com nosso futuro triste passado.
Fecho esse texto com Mãe Stella de Oxóssi, líder religiosa, pensadora de grande visão, dessas mulheres fantásticas que, se fossem creditadas de verdade, nosso país estaria hoje em caminhos muito diferentes em termos de justiça, equidade e qualidade de vida.
Há uma energia de doença no ar e lembro que alguém disse que os tempos estão difíceis para os sonhadores. Acredito nisso. Como acredito que o portal das energias pesadas se abriu com força desde aquele fatídico 14 de abril de 2016, quando a apologia à morte foi convocada e celebrada em cadeia nacional e tudo ficou por isso mesmo. Precisamos ficar atentos a isso. Talvez olhar pra morte pra buscar a valorização da vida. Parar a máquina do massacre. Agir onde puder em atenção às dezenas de milhares de jovens assassinados todos os anos, aos assassinatos impunes das lideranças indígenas e trabalhadores rurais. Parar a máquina assassina de pobres nesse país.
Clichê básico, mas é preciso dizer que lidar com a morte e seu mistério é uma das principais tarefas da vida pra quem tem interesse e/ou vivência na espiritualidade. Mas daí a aceitar essa energia banalizadora da morte é uma distância. Essas pessoas citadas aqui tinham muitas diferenças entre si, mas os unia o amor pela Vida, pela solidariedade, pela Cultura, pela fraternidade, pela Justiça e pela possibilidade de transformação da sociedade.
Que venha 2019 e que a gente tenha forças pra continuar a batalha pela Vida, tanto pela nossa no dia a dia do ganha pão quanto pela das milhares que constroem esse país rico, diverso e desigual.
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[ heraldo hb – pitacolândia – dezembro de 2018