A ÓPERA DO BRASIL REAL

Escola de samba pra mim é tipo Copa do Mundo: eu sei de todas as merdas que acontecem, mas é difícil não se emocionar. Bom, Copa do Mundo já perdi a maior parte do tesão há um tempo mesmo, confesso.
Mas escola de samba… É aquilo: você sabe que rola muita injustiça, que o dia a dia das diretorias é complicado, que tem a velha luta de classes, que a transmissão da globo é uma merda, que ficar vendo aqueles camarotes da burguesia é uma merda também, mas… Não tem jeito. Poucas coisas no mundo tem mais potência do que o momento em que uma bateria entra batendo firme, firmando a magia da ancestralidade, do DNA que vem de lá da Africa de milênios atrás…
A ópera popular do Carnaval das escolas de samba é uma das maiores contribuições que o povo brasileiro deu ao mundo, tenho certeza isso.
E tem uma Lei de Newton, não lembro mais qual o número hehehe, que diz que toda ação corresponde a uma reação de igual intensidade, marromeno isso. Cito essa lei porque ela talvez explique também que quanto maior a perseguição à Cultura, quanto maior a intolerância religiosa e quanto maior o massacre elitista sofrido pelo povo, mais, com mais intensidade, a resposta tem vindo forte por meio da arte. E no caso das escolas de samba desde o golpe de 2016 os enredos tem radicalizado, de certa forma.
Nesse ano, por exemplo, no grupo de acesso praticamente todas as escolas trouxeram enredos ligados à negritude, às lutas populares, aos povos originários… A Pequena África, o orixá Irôko, a lendária escola de samba Quilombo, o mítico capoeirista Besouro Mangangá, referenciais de grande força… E o que foi esse desfile do Império Serrano, meu Deus… E esse enredo da Sossego sobre o livro do mestre Davi Kopenawa e os xamãs… E o que foi a cena de Nossa Senhora Aparecida e Oxum na comissão de frente da Ilha… Chorei litros aqui.
E no grupo especial não será diferente… Homenagens a Cartola, Jamelão, Delegado; enredos sobre Oxóssi; Exu com Estamira; a história do Baobá; os monumentos do Rio revisitados pela perspectiva negra; Paulo Gustavo nos versos da São Clemente “Mulher com mulher, tudo bem / Homem com homem, também / O negócio é amar alguém”; o mestre zen Martinho da Vila; a lenda do guaraná e ainda dois enredos que remetem a uma visão de filosofia com um viés afrocentrado, caso da Tuiutí e da Beija-Flor.
As escolas regulares deveriam “usar” mais as escolas de samba, só acho. Não é à toa que a extrema direita e seu nojo ao povo tem jogado uma força pesada para combater as referências populares na tal “guerra cultural”… Porque é redescobrindo e recontando nossas histórias, reverenciando as heroínas e herois populares que se vitamina a autoestima, o reconhecimento e a disposição pra luta.
Num país de um racismo tão brutal, foi pelas escolas de samba que várias histórias fundamentais pra nossa história foram transmitidas ao longo das décadas.
Sei que pra muita gente esse legado é apenas entretenimento e nada mais, mas eu tenho certeza de que o vislumbre de uma civilização muito melhor vem dessa história e dessa combinação de arte e epifania.
Não tenho dúvidas que o Brasil seria só a barbárie diária mesmo não fossem essas décadas com essas histórias sendo contadas, perpetuadas, cantadas, encenadas, nas mandingas, na arte, na dança, nos encontros, no toque dos tambores, emocionando, entrando e se entranhando no dia a dia do povo que constrói a riqueza desse país.
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[ heraldo hb – pitacolândia – abril de 2022 ]

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